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É o mais intrigante dos actos do ser humano. Número de suicídios registou em Portugal uma descida progressiva na década de 90, mas subiu para mais do dobro no início deste século. Na região, o número de suicídios parece ter disparado no ano passado. Qual será, afinal,  o impacto da crise na saúde mental dos portugueses? Em entrevista ao JF, o psiquiatra Carlos Saraiva, garante que a crise económica tem efeitos negativos na saúde mental das pessoas Professor Carlos Braz Saraiva em entrevista ao Jornal do Fundão

Suicídios aumentaram para mais do dobro

JORNAL DO FUNDÃO (JF) – Qual é a realidade portuguesa relativamente ao suicídio? 

CARLOS SARAIVA (CS) – Portugal é reconhecido como um país em que as taxas globais de suicídio (n.º de mortes anuais por 100 mil habitantes) são relativamente baixas, tal como os restantes países do Sul da Europa de maioria católica, ao contrário do que se passa no Norte e no Leste. Existe, todavia, em Portugal uma marcada assimetria entre o Norte e o Sul. De facto, ao Sul do Tejo as taxas são mais elevadas devido a uma diversidade de factores sociais e psiquiátricos. Desde a desertificação à personalidade melancólica. Desde o envelhecimento à baixa religiosidade. 

JF – O número de suicídios está a aumentar? 

CS – Quando falamos dos números totais de suicídios verificou-se uma descida progressiva na década de 90 até aproximadamente  500 suicídios anuais (taxa 5) mas logo no início do século XXI constatou-se uma intrigante subida para mais do dobro, como ocorreu em 2002. Estes dados poderão corresponder não só a um aumento real de casos mas também a uma melhor fiabilidade das causas de morte, cuja resposta mais apropriada poderia ser colhida no Instituto Nacional de Medicina Legal. 

JF – Há um perfil tipo do suicida? 

CS -Em Portugal, é um homem com mais de 45 anos a viver na Grande Lisboa, Alentejo ou Algarve, que sofre de depressão e frequentemente é alcoólico. Está num estado de desespero e muitas vezes sofre também de perturbação da personalidade e dores corporais por uma qualquer doença crónica e incapacitante. Social e familiarmente mal inserido, comete suicídio por pesticida, enforcamento ou arma de fogo. 

JF – Qual é o impacto da crise e do desemprego na saúde mental dos portugueses? 

CS -Nunca como hoje se venderam tantos psicofármacos, designadamente antidepressivos. Sendo admissível uma eventual má prática da parte de alguns clínicos, prescrevendo tais medicamentos desnecessariamente, é consabida a pressão compreensível que os doentes colocam para no imediato resolverem o problema da angústia, da insónia, quantas vezes do desespero. A sociedade contemporânea não é propriamente muito dada ao amparo e à compaixão. Na verdade, muitos desses doentes sentem-se abandonados, excluídos, com falta de esperança. 

JF – E acabam por desistir …. 

CS -Alguns acharão mesmo que já nada vale a pena, cansados que estão de bater a tantas portas que jamais se abrem. Como os desempregados de longa duração. A crise económica alimentou a ideia de uma inevitabilidade negra a pairar sobre a vida e o futuro. Para personalidades mais fragilizadas a solidariedade tem que ser muito mais que uma ideia ou uma palavra. É imprescindível uma mobilização geral de apoios reais da sociedade. Para o corpo e para o espírito. 

JF – Há mais portugueses a procurar ajuda psiquiátrica? 

CS -Todos os psiquiatras conhecem a realidade das pessoas que querem ter uma vida um pouco mais digna e não conseguem. E não importa só os desempregados. Salários baixos para o nível de despesas com creches, transportes, energia, escola dos filhos, medicamentos, etc. Preços à Europa mas vencimentos não à Europa… São queixas  comuns. Muitos desses doentes estão deprimidos. Mal dormem, sentem-se melancólicos, sem energia, têm dores, isolam-se e só esperam que o tempo passe… 

JF – O que leva uma pessoa a suicidar-se? 

CS -Aqui está uma pergunta difícil. O suicídio é um comportamento complexo e multideterminado por diversas causas dentro e fora da pessoa. Desde biológicas a circunstanciais. É o acto mais intrigante do ser humano, capaz de subverter o instinto de conservação. Mais de 90% dos suicidas estavam doentes da sua saúde mental. Em mais de metade dos casos estavam deprimidos. Estes estudos foram realizados em vários países e diferentes culturas. Mesmo em Portugal. 

JF – Quem põe termo à vida quer, efectivamente, morrer ou pretende, acima de tudo, acabar com o sofrimento? 

CS -Outra pergunta difícil. Na quase totalidade dos casos o suicida pretende parar o sofrimento que interpreta como intolerável e interminável. Num momento de desespero, depois do chamado processo suicida. Numa fase em que não vê horizontes e sente-se vazio, não amado, sem pertença seja do que for. Mas ninguém se suicida para ser ignorado. Muitos desejariam para além de fugir também de renascer… 

JF – Quem acaba com a vida encara a morte como uma libertação? 

CS -Em certos casos sim, no sentido em que acaba com o sofrimento. Outros, mais raramente, poderão entender que se devem sacrificar para libertar a família de um certo “fardo”. 

JF – Os suicidas têm menor capacidade para lidar com a frustração? 

CS -Sim. Pelo menos mais dificuldade em procurar ou receber ajuda. Classicamente apontados como mais sensíveis e vulneráveis às perdas e às frustrações. 

JF – Qual é a realidade entre as camadas mais jovens? 

CS -O suicídio consumado entre os jovens é um fenómeno relativamente pouco comum. O que é muito frequente em Portugal, dentro do panorama internacional, é o para-suicídio, ou seja intoxicação medicamentosa e/ou auto-lesões. Daí algumas confusões em certos meios. Neste último fenómeno trata-se de um comportamento tido como uma revolta pelo corpo em personalidades impulsivas que utilizam estratégias inadequadas para a resolução de conflitos no plano dos afectos. 

JF – As ameaças e tentativas devem servir de alerta? 

CS -Alguns desses jovens poderão vir a ser suicidas no futuro. Ou pelo menos repetir o para-suicídio numa outra fase de perturbação, depressão ou desespero. Mesmo que pareçam infantis ou de baixo risco tais comportamentos, frequentemente de manipulação e sedução, significam algo que deveremos tentar perceber e valorizar. 

JF – A que sinais é preciso estar atento? 

CS -Os chamados síndromes pré-suicídas, são reconhecidos pelos avisos subtis, metafóricos ou explícitos da morte. Ao contrário do que se pensa, um verdadeiro mito, três em cada quatro dos suicidas falaram do suicídio. A insónia, a melancolia e o isolamento são indicadores muito importantes. O que é mais frequente é o processo suicida evoluir por três fases: pensar no acto, como forma de acabar com o sofrimento, luta interna, entre as razões para viver e as razões para morrer e, finalmente, a decisão, a passagem ao acto. Mesmo que haja muito de ambivalência nesse final. 

JF – Qual é a resposta do Serviço Nacional de Saúde em matéria de prevenção? 

CS -Dentro do Serviço Nacional de Saúde a prevenção deve incidir sobre os chamados grupos de alto risco, como os deprimidos, esquizofrénicos e toxicodependentes, incluindo os alcoólicos. Existem algumas consultas especializadas para este tipo de doentes nos hospitais psiquiátricos, como acontece em Coimbra, nos Hospitais da Universidade, desde 1992. Contudo, um Plano Nacional de Prevenção do Suicídio deveria ser implementado, no qual, naturalmente, os médicos de família ocupariam papel  de relevo como “psiquiatras de primeira linha”.Também a comunicação social pode colaborar na prevenção. “Como dar as notícias de um suicídio” é um bom tema para os media trabalharem. O perigo da imitação é de considerar perante notícias sensacionalistas. Principalmente no caso de figuras públicas. E em que os jovens parecem mais vulneráveis. As directrizes da Organização Mundial de Saúde para os media estão no “site” www.spsuicidologia.pt. A escola e as políticas sociais de emprego e anti-exclusão são também muito importantes como factores de prevenção do suicídio. 

JF – Qual é o contributo da genética para a saúde mental das pessoas? 

CS -Actualmente, procuram-se marcadores genéticos não só para as doenças mentais mas também para o suicídio propriamente dito. Algumas investigações incidem sobre um neurotransmissor chamado serotonina, substância em falta em muitos dos suicidas deprimidos,  e para uma enzima relacionada com o seu transporte, a hidroxilase-triptofano. 

JF – São as mulheres ou os homens os mais afectados?

 CS -Quando se entra numa Enfermaria de Psiquiatria constata-se nos Homens mais casos de esquizofrenias, alcoolismo, consumo de drogas. Ao invés, nas Mulheres mais depressões e perturbações de adaptação. Especificidades de género e reacções a circunstâncias denotam diferenças. J

JF – O que é que um psiquiatra sente quando um doente seu põe termo à vida? 

CS -Um “nó cá dentro”. Muitas perguntas e quase sempre poucas respostas. Uma grande inquietação. O médico deverá aproximar-se da família, dar todo o apoio. Para lidar com as perplexidades, raiva, culpa ou outros sentimentos complexos. Algumas destas pessoas poderão ter que fazer psicoterapia. Existem mesmo grupos de auto-ajuda para este fim, como “A Nossa Âncora”.   

PERFIL

Suicidologia é área de interesse do Prof. Carlos SaraivaA SUICIDOLOGIA, as doenças do humor e os distúrbios da personalidade são algumas das áreas de interesse de Carlos Saraiva, Professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina na Universidade de Coimbra e Chefe de Serviço dos HUC. Especialista em Psiquiatria, doutorou-se com a dissertação “Para-Suicídio – Contributo para uma Compreensão Clínica dos Comportamentos Suicidários Recorrentes”. Carlos Saraiva tem dedicado muito do seu tempo à investigação do para-suicídio e dos comportamentos suicidários e presidiu à primeira direcção da Sociedade Portuguesa de Suicidologia. Representou a Psiquiatria Portuguesa como delegado à reunião da União Europeia das Monoespecialidades Médicas em Atenas (1993), dinamizou diversos congressos de Psiquiatria e foi co-laureado pela Internacional Association for Suicide Prevention, em 2001, num Congresso Mundial de Suicidologia (Índia).

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